Da série verdades incômodas
- Giselle Guimarães Gomes
- 13 de out.
- 4 min de leitura
Amadurecer nos permite encarar certas verdades sem medo das consequências porque já sobrevivemos há tanta coisa e o mundo não acabou. Uma dessas verdades que insistem em se mostrar ainda que por baixo de camadas de “normalidade” é o viés de gênero. Não tenho muito paciência para extremos políticos; ao contrário, minha tendência natural é acreditar que estão todos certos e errados simultaneamente e que só precisam sentar e dialogar para filtrar cada ponto. Mas, o caminho do meio é menos uma linha reta do que um zigue zague, aqui e acolá se pende um pouco mais para um lado.
No post em que anunciei o artigo, eu escrevi “Giselle é difícil”. Ouvi isso tantas vezes que aprendi a brincar: “difícil de manipular, hehe”, “difícil de contra-argumentar” ou o meu preferido: “antes fama de difícil que de fácil, já pensou?” E vida que segue. Mas, com o falecimento da Dra. Jane Goodall, no último dia 1°, muito material dela tem chegado a mim e uma frase sua saltou aos meus olhos, uma em que ela fala que não é preciso muito para uma mulher ser tida como difícil. Para quem não a conhece, ela foi a primeira pessoa, não a primeira mulher, mas pessoa, a estudar o comportamento de primatas no seu habitat natural africano. Certamente, precisou comprar muita briga para se posicionar.
De fato, a maturidade revela que basta pouco para uma mulher ser tida como difícil. Às vezes, basta falar e já corre o risco de ser chamada de agressiva. Estabeleceu limites claros? Fria ou insensível. Questionando processos estabelecidos? Lá vem a negativa criadora de caso...Não é incomum ver o homem fazer exatamente o mesmo, mas ser percebido como “confiante”, “decidido”, “assertivo”, etc
À mulher não basta, apenas, dizer: ela tem que demonstrar, provar, insistir, abrir o caminho. Cada argumento seu carrega o peso silencioso de uma exigência de comprovação que não se demanda do homem. Ela precisa ser convincente, enquanto, muitas vezes, o homem só precisa falar.
Situações que já vivi: várias mulheres reclamando de um chefe (não estou falando de assédio, mas reclamações normais) e o chefe ser mantido porque essas mulheres são difíceis mesmo. Outra “ah, ele foi nomeado chefe porque ninguém quis”, ninguém sendo várias mulheres mais experientes, mas percebidas como “difíceis”, algumas retiradas do páreo até mesmo antes da disputa. Por que será que elas não aceitam? Por que será que algumas mulheres preferem não participar de certos grupos? Talvez porque o ambiente seja hostil? De novo, não estou falando de assédio descarado desses que a gente reúne provas e processa. Não estou falando do extremo. Estou falando da dificuldade do dia a dia, do viés inconsciente ou subconsciente – até hoje não aprendi a diferença entre inconsciente e subconsciente e, sim, eu uso travessão, não é a IA, rs. Estou falando do quão cansativo é falar, falar de novo, trazer referência, demonstrar, falar mais uma vez, retomar o assunto, “sei que estou sendo chata, mas lá atrás eu abordei e...”. Não vou nem entrar nos elogios que vão, em especial, para o coordenador homem em vez de para a equipe inteira feminina.
O pior, sendo bem sincera, que esse escrutínio não vem só dos homens, mas é algo cultural e disseminado. Vem também de outras mulheres, às vezes até de mulheres mais velhas que, em vez de abrirem a porta para a próxima geração, sentem desconforto com a presença de uma mulher jovem, inteligente e bem-sucedida. Surgem sutilmente rivalidades, puxadas de tapete silenciosas, microagressões, aquela leve difamação que pune. Ai, de você se namorar com um homem poderoso, então: todos seus ganhos serão consequência só disso. Você não é boa em investimento, casou bem; você não é boa o suficiente para a posição, só era mulher do Fulano, o que, sejamos sinceras, acontece também.
Por fim, temos o paradoxo da idade. A mulher precisa manter-se jovem. Não só na aparência, pinta cabelo, coloca botox, mas no comportamento. Na meiguice, doçura, na manutenção de uma certa ingenuidade. Jovem o bastante para parecer cativante; nunca tanto que sua inteligência pareça ameaça. Isso em um ambiente intelectual é excruciante. Ele é o Amaral, o Mota, o Carvalho Silva, o Dr. Rodrigues, ela é a Gi, a Lu, a Mari, a Laurinha. Ela é a “garota”, mesmo já sendo uma senhora com mais de dez anos de doutorado nas costas. A sua autoridade já é amolecida no vocativo. “Você sabe como são as meninas da Biologia, né?”. Tanto que há aquelas que se ofendam quando são chamadas de senhoras, ainda que envelhecer seja um privilégio negado a muitos e ninguém deseja a alternativa.
Enfim, se ser chamada de difícil significa recusar-se a encolher, carregarei esse rótulo com orgulho. Porque, como disse a Dra. Jane Goodall, sim, doutora, não aquela menina dos macacos, “na verdade não é preciso muito para ser considerada uma mulher difícil. É por isso que há tantas de nós.”
In memmorian de Dra. Jane Goodall, falecida em 1º de outubro





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